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25 de Abril de 2024

“Bullying”: um jogo de poder em que todos perdem

Publicado por Débora Spagnol
há 6 anos

A educação faz parte da vida de todos os que vivem em sociedade. Mas é na família que os filhos encontram o primeiro e mais importante ambiente de socialização: no seu seio são transmitidas as primeiras concepções de mundo, os valores morais, as crenças e filosofias de vida, sendo a base da construção psíquica da criança. A escola, depois, será responsável pelo aprendizado intelectual, o desenvolvimento e a construção da identidade que se dão pela vivência entre os diferentes. Crianças e adolescentes saudáveis e sociáveis – pode-se dizer – são fruto de uma boa base familiar e escolar.

A família brasileira sofreu diversas transformações desde o final do século XIX até os dias atuais: da família tradicional burguesa - onde predominava o patriarcado e a submissão feminina – para a família contemporânea, na qual não há um modelo único e correto de núcleo familiar. Diversas configurações convivem entre si (famílias homoafetivas, monoparentais, reconstituídas) enquanto os papeis e funções vividos pelos sujeitos dentro das relações familiares geram diferenças nas representações. Com número cada vez maior de mulheres no mercado de trabalho, sua renda já é considerada essencial para a sobrevivência digna da família (1). E a cada ano cresce o número de famílias sustentadas exclusivamente por mulheres.

Embora tenha aumentado o tempo que a mãe fique fora de casa em busca de sustento, o pai ainda não consegue suprir esse tempo junto aos filhos, que necessariamente são deixados aos cuidados de creches ou terceiras pessoas (muitas vezes da família, como tias e avós), o que termina por interferir na dinâmica familiar. Enfraqueceu-se a forma autoritária de educação (hoje se entende que uma boa educação deve se basear no amor com limites), que passa a ser exercida conjuntamente pelos pais e nem sempre da forma mais benéfica aos filhos – geralmente oscilando entre o autoritarismo e a permissividade.

Por conta desses novos paradigmas e da dificuldade de sua aplicação, muitas vezes a educação familiar nem sempre se realiza de forma completa, cabendo então à escola assumir perante crianças e adolescentes atribuições inerentes ao núcleo familiar. Ocorre que nem sempre os professores estão preparados para isso – falta estrutura, preparo e, principalmente, incentivo por parte do Estado para que se forneça uma educação integral. Assim, muitas vezes conflitos não resolvidos em casa pela criança ou adolescente terminam por serem transferidos à escola, em proporções muito maiores e mais violentas. (2)

Assim, no ambiente escolar muitas vezes se desenvolve uma forma de violência que, durante muito tempo foi ignorada pela nossa sociedade, pois travestida de brincadeira: o “bullying” – palavra inglesa, sem tradução em nossa língua e que deriva de “bully”, valentão, briguento, tirano. O termo foi criado pelo pesquisador sueco Dan Oewuls após o massacre na escola de Columbine, em 1999. (3)

Por bullying podemos então definir toda a conduta consciente através da violência física ou psicológica que visa, de forma reiterada e sem motivo aparente, agredir, humilhar, intimidar, difamar, perseguir, abusar sexualmente outras pessoas que apresentam dificuldade de defesa.

Ao contrário do que se imagina, porém, o bullying não é prática nova: há relatos de que comportamentos antes definidos como “briguinhas de escola” e “chacota” já foram descritos no ano de 1240. (4) Vistos como naturais, tais comportamentos somente chamaram a atenção para estudos quando se perceberam as consequências psicológicas avassaladores que causavam às vítimas e que, sem outra alternativa, mudavam de escola, trabalho, cidade ou até mesmo resistiam em silêncio.

Como “doença social”, o bullying foi inicialmente estudado na década de 70 em países como Suécia, Dinamarca e Noruega. Na Noruega, o suicídio de três adolescentes em razão de abusos cometidos por colegas de escola deu início a uma ampla pesquisa que surpreendeu a sociedade ao constatar que um em cada sete alunos estava envolvido em bullying. Atualmente, segundo o UNICEF, dois em cada três alunos já sofreram bullying e nove entre dez entrevistados acham que tal comportamento é generalizado. Além disso as agressões, em sua maioria, ocorrem em sala de aula. (5)

O Brasil só começou a estudar esse fenômeno no início dos anos 2000 através da importação de um projeto inglês. No dia a dia, as Varas de Infância e Juventude têm absorvido os numerosos casos de bullying que ocorrem mais frequentemente nas escolas públicas – diretamente tuteladas, portanto, pelo Estado. Mesmo assim, há denuncias de que a maioria de situações envolvendo tal comportamento são abafados pelas direções das escolas – seja para proteger a integridade da escola, dos professores, dos pais e até mesmo dos alunos. A ignorância do assunto, portanto, é um desserviço às vítimas e até mesmo aos agressores – somente um problema conhecido pode ser solucionado.

O bullying (tal como o estupro) envolve relação de poder: o agressor geralmente possui algumas características vistas como superiores pela vítima: idade, apoio dos amigos, estrutura física ou emocional, autoridade, sociabilidade, estatura, dinheiro ... A vítima fica, então, intimidada e indefesa diante das ofensas verbais ou físicas, coação, corrupção, imprudência ou negligência contra ela praticadas.

Mas nem todas as condutas podem ser caracterizadas como bullying: não basta ser maldosa, deve ser repetitiva durante certo tempo, dirigida à mesma (ou mesmas) pessoas em razão de um desequilíbrio de poderes entre agressor e vítima. Os ataques devem ser desmotivados, causando grave dano psicológico que comprometa sua saúde física e emocional.

Os personagens envolvidos no bullying são:

a) autores – chamados “bullies”. São aqueles que se utilizam, de forma individual ou coletiva, do abuso de poder e intimidação para render pessoas que se consideram inferiores. Os agressores geralmente apresentam históricos anteriores de mau comportamento, não aceitam a imposição de regras, têm dificuldade em aceitar ser contrariados, são populares no meio em que vivem e não demonstram culpa ou arrependimento pelos atos praticados. O mau comportamento pode começar em casa, geralmente na forma de maus tratos contra os animais. Estudos indicam que as tendências delituosas nascem com o indivíduo, podendo ser concretizadas se não houver uma reação efetiva da família ou do ambiente em que convive mais intensamente com outras pessoas – geralmente a escola. (6)

b) vítimas – geralmente são pessoas que apresentam dificuldade de socialização, causada por alguma característica que as diferencia da maioria: orientação sexual, raça, credo, condição socioeconômica ou cor diferentes, deficiência física ou intelectual, usa óculos ... Demonstram ainda fragilidade – característica típica das pessoas mais reservadas ou tímidas. Ao demonstrar fraqueza, a vítima desperta no agressor a ideia de poder e superioridade, com consequente subordinação do agredido. Como toda a violência psicológica, a prática de bullying torna-se ainda mais prazerosa quando tem conhecimento de que a dor provocada vai muito além da flagelação física. Pessoas com transtornos comportamentais podem, involuntariamente, agir de forma a provocar o bullying, facilitando assim sua própria culpabilização pelo agressor. Há ainda vítimas que acabam reproduzindo as agressões sofridas contra alguém ainda mais vulnerável e sem defesa.

c) testemunhas – dependendo de sua atitude, as testemunhas do bullying podem ser definidas como passivas (apenas assistem, não agem por medo de também se tornarem vítimas das agressões que vivencia, mesmo repudiando-as), ativas (não participam das agressões, mas incentivam os agressores através de apoio moral) e neutras (assistem passivamente às agressões, nada fazem e não se solidarizam pelas vítimas). Os neutros, geralmente, vêm de ambientes desestruturados e vivem em ambientes violentos, encarando de forma corriqueira as situações de agressão.

De forma didática, o bullying é dividido em classificações ditadas pelo comportamento do agressor: a) verbal: agressões praticadas por meio de xingamentos, gozações, piadas ofensivas, ofensas, fofocas, atribuição de apelidos; b) físico: ações que atentem contra a integridade física da vítima: tapas, puxões de cabelo, chutes, empurrões; c) sexual: assédios, abuso ou insinuações de conteúdo sexual, que visem tão somente humilhar a vítima; d) psicológico: dá-se principalmente pelo desprezo, difamação, perseguição, ameaças, intimidação, chantagens e humilhações; e) material: quando ocorre perda material pela vítima através de furto, roubo ou destruição de seus objetos; f) virtual: é o denominado cyberbulling: ocorre através da divulgação de imagens e vídeos, invasão de privacidade, com a exposição da vítima a situações constrangedoras e que lhe causem vergonha.

Para além das escolas, o bullying pode ainda ocorrer em ambientes de trabalho e geralmente se caracteriza por agressões verbais que envolvem diretamente a moral da vítima, sendo a forma mais comum o assédio moral, sendo o chefe o agressor e a vítima o funcionário. (7)

As consequências do bullying vão além do ambiente em que ocorrem e podem causar efeitos físicos e psicológicos devastadores nas vítimas e testemunhas, pois atinge diretamente o ego dos envolvidos, tornando-os pessoas inseguras, ansiosas, com raiva reprimida e levando a dificuldades em todos os setores de sua vida, comprometendo o desenvolvimento de sua vida social.

Sentimentos de raiva e vingança, estresse, depressão, baixa autoestima, resistência às frustrações, redução da capacidade de auto aceitação e o desenvolvimento de transtornos mentais e psicopatologias graves são resultado das agressões e podem desencadear suicídios e outros atos de delinquência, sendo o mais grave o homicídio. A mídia é farta de notícias acerca de matanças praticadas por vítimas ou antigas vítimas de bullying. (8) Os bullies podem apresentar, na vida adulta, valorização da violência, pratica de agressões desmotivadas, furtos ou roubos, consumo de álcool e drogas.

Em termos legais foi promulgada em 2015, a Lei nº 13.185, apelidada de “Lei do Bullying”, tal serviu apenas para identificar normativamente o bullying e o cyberbullying, regulamentando os comportamentos de crianças e de adolescentes que, não obstante possam se considerar violentos, nem sempre se constituirão atos infracionais (condutas conflitantes com a lei), mas tão somente atos de indisciplina. (9)

Em resumo tal lei, subjetivamente interpretada, diz que nem toda agressividade, disputa e conflitualidade interpessoal se caracteriza como bullying. A lei, assim, não descreveu a intimidação sistemática – bullying ou cyberbulling – como um tipo penal específico, mas tão somente como uma nova modalidade de violência, não prevendo nenhuma medida eficaz na tentativa de impedir sua propagação. Assim, todo e qualquer ato de indisciplina constatado em âmbito escolar deve ser resolvido de acordo com as regras que regem as atividades educacionais, e não pelo Judiciário.

O art. da Lei 13.185/2015 é claro em sua intenção “preventiva”, com foco principalmente na conscientização e orientação acerca do problema: passa a ser dever legal dos estabelecimentos de ensino, clubes e agremiações recreativas assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e à intimidação sistemática (bullying).

A proteção legal às vítimas (sua vida, integridade física, honra) então, deverá se fundar na Constituição Federal, que prevê, em seu artigo 227, que prevê como “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade”, assegurar os direitos à vida, saúde, educação, dignidade, respeito, liberdade, entre outros, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Em virtude da extensão lesiva das agressões podem também ser invocados a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (que afasta o tratamento cruel, desumano e degradante ao ser humano) e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (garante o direito à integridade pessoal, compreendendo os aspectos físicos e morais).

No campo infraconstitucional, os delitos praticados por agressores adultos enquadram-se no previsto no Código Penal, nos títulos de crimes contra a pessoa ou contra o patrimônio (Títulos I e II, da Parte Especial do Código Penal). Ocorre que sendo muitas vezes os “bullies” adolescentes ou mesmo crianças, não estão sujeitas à aplicação do Código Penal, mas sua inimputabilidade não figura óbice à possibilidade de tutela jurídica penal repressiva à sua conduta, que então será considerada “ato infracional”, regido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90.

O agressor, então, estará sujeito às medidas socioeducativas de advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade e, em casos de maior gravidade, à liberdade assistida, inserção em regime de semi-liberdade e a internação em estabelecimento educacional aplicadas individual ou cumulativamente, quando possível, sem prejuízo das demais medidas cabíveis no art. 101 do ECA. (10)

As vítimas de bullying poderão ainda buscar a reparação adequada a título de danos morais, materiais ou estéticos, se for o caso, via processo cível, a ser ajuizado contra os pais do agressor, uma vez que ele é incapaz de responder pelos seus atos também na esfera civil.

Dado o crescente número de casos envolvendo bullying e as terríveis consequências que dele advêm, torna-se urgente uma resposta do Estado ao problema.

Mas é inocência crer que tudo se resolverá no âmbito penal. A solução, nos parece, dar-se-á de forma multidisciplinar, com o trabalho conjunto das autoridades legislativas e administrativas, não esquecendo que, por se tratar de questão cultural, torna-se fundamental a conscientização de todos os envolvidos para um concreto enfrentamento do problema.

REFERÊNCIAS:

1 – FIORIN, Pascale Cechi et al. In: Reflexões sobre a mulher contemporânea e a educação dos filhos. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/sociaisehumanas/article/view/2880/2859. Acesso em outubro/2017.

2 – “O ideal de família seria aquela em que o predominasse o amor, o carinho, a afeição e o respeito. Mas nem sempre isso acontece. Nesses casos, muitas crianças e jovens se desvirtuam e passam a reproduzir o que aprendem com seus familiares. Seja reproduzindo a violência sofrida em casa, seja reproduzindo formas de uma educação deturpada, em que se combate violência com violência (...)”. PEREIRA, Sônia Maria de Souza. Bullying e suas implicações no ambiente escolar. São Paulo: Paulus, 2009. p. 53.

3 – https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Columbine. Acesso em outubro/2017.

4 - FRANÇA, Amlyn Thayanne Santos de. Aspectos gerais sobre o bullying e sua tipificação penal no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: https://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=3388. Acesso em outubro/2017.

5 - https://www.dn.pt/sociedade/interior/dois-em-cada-tres-jovens-de-18-paises-ja-foram-vitimas-de-bullying-5335175.html. Acesso em outubro/2017.

6 – MYRA Y LÓPEZ, Emílio. Manual de psicologia jurídica. 2ª Ed., São Paulo: Vidalivros, 2011.

7 – Sobre assédio moral no trabalho, confira artigo da mesma autora: http://femininoealem.com.br/26511/assedio-moral-quandooambiente-de-trabalhoecausa-de-doenca/. Acesso em outubro/2017.

8 – Há farta divulgação na mídia de casos envolvendo homicídios e/ou suicídios em razão do bullying. No Brasil, o caso mais recente aconteceu em Goiânia, onde um adolescente filho de militares matou dois e feriu cinco colegas de sala, em razão das agressões que sofria. https://g1.globo.com/goias/noticia/adolescente-suspeito-de-mataratiros-dois-colegas-sofria-bullying-diz-estudante.ghtml. Acesso em outubro/2017.

9 – RAMIDOFF, Mario Luiz. Lei n. 13.185/2015: Lei do Bullying. Disponível em: https://marioluizramidoff.jusbrasil.com.br/artigos/254567463/lein13185-2015-lei-do-bullying. Acesso em outubro/2017.

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